Treinamentos inusitados com cadáveres para profissionais da área de harmonização facial

Imagine um laboratório que parece mais uma sala de aula de anatomia — e não está tão longe disso. Lá, dentistas, dermatologistas e biomédicos estão diante de cadáveres, não para explorar algo mórbido, mas para realizar treinamentos detalhados de harmonização facial. 


Esses corpos não são locais, são importados, congelados e mantidos com o máximo de integridade para simular uma experiência real. Por que essa demanda inusitada existe e por que o Brasil é um dos principais países a investir em uma técnica assim? 


A resposta começa com a popularização da harmonização facial e o surgimento de uma indústria que mistura ciência, estética e um treinamento altamente técnico.


A origem e a evolução da harmonização facial


A harmonização facial não surgiu da noite para o dia e nem em um único local. Técnicas de preenchimento e aplicação de toxina botulínica já eram utilizadas há décadas em intervenções estéticas e médicas nos Estados Unidos e na Europa. 


Com o tempo, profissionais de diferentes especialidades começaram a entender o potencial de combinar esses tratamentos para esculpir o rosto, criando uma estética mais simétrica e rejuvenescida.


Nos Estados Unidos, a harmonização facial começou como um conjunto de procedimentos, mas foi no Brasil que a prática realmente ganhou uma identidade única. 


A popularidade do procedimento entre celebridades brasileiras e o aumento da busca por métodos não invasivos impulsionaram a criação de cursos e especializações que não existiam em outros países com a mesma força. Essa demanda, no entanto, trouxe novos desafios, especialmente na formação adequada dos profissionais.


Uma das curiosidades sobre o treinamento de harmonização facial no Brasil é o uso de cadáveres importados, uma prática que desperta espanto. O país enfrenta uma escassez crônica de cadáveres para estudos acadêmicos e práticos devido à baixa cultura de doação de corpos. 


Nas universidades, apenas instituições como a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) conseguem manter um programa de doação que abastece as aulas de anatomia. Mesmo assim, não é possível suprir a demanda para os cursos de medicina, quanto mais para a crescente área estética.


Para contornar essa limitação, centros de treinamento optam por importar cadáveres “fresh frozen”, ou seja, que foram congelados logo após o óbito para manter a qualidade das estruturas internas, como músculos e nervos, o que proporciona um realismo essencial para a prática precisa dos procedimentos estéticos. 


Essa técnica de preservação evita o uso de formol, que degrada tecidos e compromete a experiência prática, resultando em uma réplica quase exata da anatomia viva.


Esses cadáveres vêm, em sua maioria, dos Estados Unidos e da Holanda, onde a doação de corpos para fins científicos e educacionais é mais comum. 


A logística, entretanto, é cara e complexa, envolvendo desde a coleta em países do exterior até o transporte em câmaras específicas para garantir a preservação ideal. 


O treinamento em cadáveres frescos envolve mais do que simplesmente aplicar as técnicas de preenchimento ou botox. Profissionais treinam a precisão necessária para evitar danos a nervos e vasos sanguíneos da face. 


Ao utilizar cadáveres, podem visualizar diretamente a disposição dos músculos e vasos, o que torna a prática mais segura e eficaz para procedimentos reais em pacientes.



Esses cadáveres, em alguns casos, têm os vasos sanguíneos preenchidos com corantes para destacar sua posição e trajeto, facilitando a visualização e permitindo que os profissionais se familiarizem com a complexidade da anatomia facial. 


“Nada substitui o treinamento em cadáver fresco, que simula quase perfeitamente a textura e consistência da pele e dos tecidos de um paciente vivo,” afirma Mohamad Abou Wadi, especialista do Instituto de Treinamento em Cadáveres para uma entrevista à BBC Brasil.


Além disso, ao término do treinamento, os cadáveres ainda são dissecados para análise de erros e acertos, permitindo que o aprendizado vá além da prática em si. Esse uso minucioso maximiza o aproveitamento do cadáver, que, após essa etapa, é incinerado conforme os protocolos legais e sanitários.


A harmonização facial no Brasil não é apenas uma questão de estética, mas também de status e acessibilidade. O procedimento tem se tornado popular em todas as classes sociais, o que impulsiona ainda mais a demanda por profissionais qualificados e prontos para atender com segurança. 


Para obter essa formação, dentistas, biomédicos e farmacêuticos se especializam em pós-graduações e cursos específicos para harmonização facial, cada um deles atendendo a requisitos mínimos para realizar os procedimentos com aprovação do Conselho Federal de Odontologia e do Ministério da Educação.


Apesar de parecer um procedimento de luxo, cursos para harmonização facial tornaram-se mais acessíveis em comparação a outros tratamentos estéticos invasivos, com custos que variam entre R$1.500 e R$15.000, dependendo da instituição e da complexidade do treinamento.


Os riscos e os desafios éticos


O treinamento em harmonização facial exige não apenas habilidade prática, mas também uma profunda compreensão anatômica para minimizar os riscos. A técnica se for aplicada de forma inadequada pode resultar em complicações como necrose, embolia e danos permanentes aos nervos.


Há debates sobre quem pode e deve realizar esses procedimentos. Médicos dermatologistas e cirurgiões plásticos defendem a exclusividade dos procedimentos cosmiátricos invasivos, devido ao alto risco associado, enquanto dentistas e biomédicos, após treinamentos extensivos, reivindicam seu espaço no mercado.


Mas enquanto para muitos o uso de cadáveres frescos é essencial para garantir segurança ao paciente, críticos argumentam que há uma prioridade equivocada em um país onde universidades mal têm acesso a corpos para o estudo de medicina básica.


O Brasil ainda tem um longo caminho para consolidar uma cultura de doação de corpos. Segundo dados da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, existem apenas 41 programas ativos de doação de corpos no país, o que representa um número insuficiente para a quantidade de instituições que precisam do material.


Foto: Ilustração

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